Revista SEDOC – Serviço de Documentação – Edição 21
Editora Vozes – Petrópolis – 1988
HOMILIA DO PADRE PEDRO CARLOS CIPOLLINI
EM MEMÓRIA DO MARTÍRIO DE DOM OSCAR ROMERO
Comemorando o 10° aniversário de fundação, no dia 24 de março passado, o Instituto de Teologia Paulo VI da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP), abriu o ano letivo com uma concelebração eucarística, em que participaram os bispos, 14 sacerdotes e todos os estudantes do curso teológico. A solenidade foi dedicada à “memória do martírio de Dom Oscar Romero”. Na liturgia da Palavra, Pe. Pedro C. Cipollini, vigário episcopal e professor de Eclesiologia e História do mesmo Instituto, proferiu uma solene homilia, onde se enfoca a sugestiva figura de apóstolo e mártir da América Latina atual.
INTRODUÇÃO
Sr. Arcebispo, Srs bispos, caros colegas no sacerdócio e no magistério, prezados alunos, membros do Instituto de Teologia e todos os que estão aqui presentes, na alegria e simplicidade desta celebração.
Falar de D. Oscar Romero é falar de América Latina. A AL, do México ao Mar del Plata, tem merecido ultimamente, as atenções do mundo:
A sua situação e o seus problemas políticos, sociais, econômicos e religiosos, tornam-na um dos palcos decisivos da história do mundo, nesta virada de século.
De obscuro quintal das grandes potências, primeiro coloniais, depois liberais e, enfim imperialistas, ela vem surgindo, por sua população, sua cultura e seus recursos, como um potencial alternativo para uma humanidade diferente. Tão importante é seu papel renovador que o domínio internacional do capital recrudesceu entre nós as rédeas do controle e da tirania, impondo a força e a violência através da “Lei de segurança Nacional”, aplicada aos vários países LA.
Em meio a esta situação, o povo caminha num longo e penoso Êxodo rumo à “sua” própria Terra Prometida. Onde há organização popular, o processo de libertação vai avançando, o povo vai rompendo com a submissão e caminhando numa linha de libertação e vida. O papel da Igreja neste processo é de suma importância: “sem evangelização não há libertação sócio-política, não há evangelização na América Latina”, podemos concluir facilmente com os estudiosos e teólogos da AL.
Neste contexto vão surgindo corajosos profetas, profetas de um tempo novo, entre eles D. Oscar Romero, cuja memória hoje queremos celebrar no contexto desta Eucaristia. Morrer mártir é um privilégio na tradição do cristianismo— e morrer mártir enquanto se celebra a Eucaristia, é um sinal indiscutível de aprovação de Deus às atitudes do mártir: Como foi aprovada por Deus a vida do Mártir Maior, que no Calvário ofereceu o primeiro sacrifício Eucarístico.
Assim como aconteceu com Jesus Cristo (Lc 23, 1-5), e o letreiro fixado na cruz queria expressar isto, são feitas tentativas para reduzir o sacrifício de D. Oscar a causas meramente políticas, dissociadas da fé. Mas à medida que o tempo passa, vai ficando mais e mais evidente a autenticidade cristã de seu martírio.
- ROMERO
Não se pode falar de um mártir sem falar de sua vida, sem fazer a memória do mártir, sem fazer o relato, por mais sucinto que seja do itinerário de sua vida.
OSCAR ARNULFO ROMERO Y GALDAMEZ, era o segundo filho de uma família de sete irmãos. Seus pais: Santo Romero e Guadalupe Jesus Galdamez. Nasceu em Ciudad Barrios em 15 de agosto de 1917.
Seu pai era funcionário do correio da cidade. Não era um homem piedoso e teve de receber instrução religiosa para poder se casar. Somente quando seu filho Oscar tinha dois anos, o pai providenciou para que fosse batizado.
Como adolescente trabalhou em uma carpintaria, onde fazia caixões de defuntos e outros móveis de utilidade doméstica. Entrou para o seminário, onde ia muito bem nos estudos, mas saiu para trabalhar na mina de ouro de Potosi, a fim de ajudar a família durante a doença da mãe. Os padres do seminário o convenceram a voltar, para retormar os estudos.
Seu bispo o enviou a Roma, onde cursou teologia na Universidade Gregoriana. Ordenado padre, foi pároco de uma cidadezinha do interior e, posteriormente , cura da catedral . Neste ministério ficou até completar 25 anos de sacerdócio, quando foi eleito bispo-auxiliar de San Salvador. Foi transferido para a Diocese Santiago de Maria, onde ficou dois anos. Até a época D. Oscar era um padre bom e piedoso, inteligente e cheio de zelo apostólico, porém não tinha achado ainda o caminho que o levou ao martírio. Em um relatório confidencial à CAL ele se mostrava preocupado com os padres “progressistas” e os “cristãos comprometidos”. Em 06/08/76, festa do Divino Salvador, padroeiro do país fez um sermão onde critica as “novas cristologias” e indiretamente a obra recém-lançada de Jon Sobrinho: Cristologia desde América Latina.
Em fevereiro de 1977 é eleito Arcebispo da Capital. San Salvador, onde permaneceu por três anos até sua morte. Parece-nos que Deus preparou esse homem durante toda sua vida, exatamente para estes três anos. Este homem tímido de fala mansa, apegado à oração. Este homem em quem a oligarquia de El Salvador depositava tanta confiança. Ele vai surpreender a todos com sua mudança radical. Não se pode falar aqui de conversão, como a de S. Paulo, mas sim da aceleração de um processo de mudança, de opção pelos pobres, processo que já existia e que as circunstâncias fizeram intensificar-se, e chegar ao ápice em um tempo curto.
Ouvindo o clamor do seu povo e seguindo o seu clero, na sua grande maioria comprometido com os pobres, D. Romero vai se tornado voz dos que não tem voz. Com isso coloca contra si toda a oligarquia liderada pelas 14 famílias que dominavam o país, a imprensa, seus colegas bispos, o núncio e a Cúria Romana. Como aconteceu com Jesus Cristo, todos o abandonaram e o entregaram à morte. (inclusive, se opunham a ele, seu bispo-auxiliar e o Bispo Alvarez de S. Miguel que era coronel do exército).
- Romero fica firme em sua ação pastoral, mas não deixa de perceber o que acabou acontecendo, pois dizia: “desde que sou Arcebispo não faço outra coisa senão recolher os cadáveres de meus sacerdotes e leigos… Parece que isso vai continuar até que um dia vão ter que recolher o meu próprio cadáver”. Realmente, quem assume a causa dos perdidos, perdido está!
O Papa Paulo VI lhe deu um cálice de presente e o incentivou a ser corajoso diante da situação. O Papa João Paulo II nomeou um visitador para a Arquidiocese a fim de investigar seu trabalho. Em audiência particular, o Papa recomenda-lhe muita prudência. Mas D. Romero estava disposto ir até o fim, parece que seguia o que já ensinava Gandhi, outro líder da não violência:” Não escuteis os amigos, quando o AMIGO interior voz dizia: fazei isto”. Falava a seus colaboradores:
“Se algum dia eu estacionar, ou pior ainda, voltar para trás e chegar a dizer algo diferente do que estou agora afirmando e assumindo, vocês devem continuar, o caminho é por aqui”.
Em fevereiro de 1980 o ministro Miguel D’Escoto oferece a Nicarágua como refugio, mas ele não aceita, ficou para morrer com seu povo.
Foi assassinado dia 24 de março de 1980, exatamente na hora do ofertório da missa que celebrava. Foi enterrado no dia 30, na catedral , às pressas. Esta missa de corpo presente também não chegou ao fim…
No meio das bombas, dos disparos, do sangue e do horror, o arcebispo foi enterrado (…) Foi sepultado no meio de feridos e mortos, com as paredes da catedral protegendo o povo indefeso dos ataques dos poderosos. Ele foi sepultado como vivera, no meio de um povo oprimido, pisoteado, cuja causa ele assumira como sua, e a cujas, aspirações ele
dera voz”.
3. CONCLUSÃO
a) O martírio se converte em sinal do Reino de Deus somente na lógica das bem-aventuranças. Os que são declarados bem-aventurados não o são em virtude de sua situação precária, senão em consequência da vontade de Deus em dar-lhes o Reino. Nem a pobreza, nem a fome, nem a aflição, nem o martírio dão a bem-aventurança. Somente a condição nova que seguirá a derrubada da desordem atual, da injustiça fará dos deserdados de hoje os destinatários das riquezas do reino.
Os mártires protestam contra uma situação dominada pelas forças do anti-Reino. Nenhum mártir autêntico buscou a morte, mas encontrou-a no seu caminho para amedrontar, e enfrentou-a. O mártir cristão é sempre um não-violento que faz uso somente da força da palavra. Sabe que não somente os oprimidos são vítimas do mal (mysterium iniquitatis) mas também os opressores. Antecipam desta forma uma inversão radical da condição humana. Os vencedores de hoje, as forças que matam o mártir acabarão vencidas, não por uma vingança do mártir, mas pela FORÇA MAIOR que sustentou o mártir. Força que é a força de Deus agindo na História para redimir a humanidade e a criação. Força misteriosa e paradoxal que faz com que o sofrimento do justo redima o injusto, vencendo pelo mecanismo da misericórdia (que é justiça perfeita) e não pelo mecanismo da força bruta, da violência. Neste sentido como diz a carta aos Hebreus (9,22): “Sem derramamento de sangue não há redenção”.
b) Romero viveu o que ensina o Concílio Vaticano II que diz:
“Os cristãos, andando com sabedoria, façam o possível para difundir a luz da vida, com toda confiança e coragem apostólica, até a efusão de sangue”.
Romero é para nós junto com os outros cristãos ilustres, testemunha de vida. Assim como no inicio da Igreja tivemos os “pais da Igreja”, ele é para nós um dos pais da Igreja Latino-Americana, Igreja que impulsionada pelo Espírito Santo, com sua maneira de ser quer existir para os pobres, ser Igreja do povo, dos pobres: Servidora do Reino.
Romero, Bispo e Mártir, canonizado no coração dos cristãos latino-americanos, cristãos que possuem o “sensos fidelium”, embora não canonizado oficialmente, por um longo e dispendioso processo, o qual nos possibilitaria venerá-lo abertamente como santo da Igreja Universal. Assim como Santa Joana D’Arc, condenada à morte pela Inquisição. D. Romero terá de esperar que desmanche a conjuntura que o matou. Terá que esperar algumas gerações, até que sejam sepultados todos os Judas, Herodes, Pilatos, Caifazes e sumos sacerdotes que participaram da trama que o matou.
Romero representava um tipo novo (e no entanto sempre existente) de perfeição cristã, diferente da perfeição no entender da cultura grega que impregnou o cristianismo, que é a perfeição do raciocínio, da inteligência, da contemplação. D. Romero atingiu a perfeição cristã brotada da fé, fé que age pela caridade: Amor que doa a vida sem medida.
É uma espiritualidade para hoje, contemplação na ação e no conflito. Os poderosos, inimigos da vida, instalados nos seus tronos, tudo fazem para sepultarem para sempre D. Romero, sua voz, seu ideal. Em vão, ele, como seu Senhor, morreu e ressuscitou, como prova nossa celebração de hoje, que estamos vivenciando agora. Amém.