14 de setembro 2016 – Matriz da Sagrada Família em São Caetano do Sul
Nm 21,4-9; Fl 2,6-11; Jo 3,13-17)
Prezados irmãos e irmãs:
Hoje somos chamados através da palavra de Deus a contemplar a cruz de Cristo. Não é para nos instalar no dolorismo, mas para reconhecer o amor de Deus que salva o mundo. Tendo nos amado amou até o fim, até a cruz! A morte de Cristo na cruz é o acontecimento central (juntamente com a ressurreição) da fé cristã, fé que professa a redenção e salvação do homem e do mundo nessa morte como escreve São Paulo: “Cristo morreu na cruz por nós, pelos nossos pecados”(Rm 5,8).
A origem desta festa remonta à dedicação das basílicas do Gólgota e do Santo Sepulcro, construídas por Santa Helena mãe do imperador Constantino, dedicação realizada em 13 de setembro de 335, sendo que no dia seguinte se mostraram os restos da Santa Cruz.
O conjunto dos textos aqui proclamados nos leva a penetrar no mistério da cruz que é tema central no Evangelho de S. João. O dom da vida de Jesus que morre na cruz é manifestação da glória de Deus, isto é, do ser do próprio Deus que é amor (1Jo 4,8-9). Na cruz Jesus pode, certamente dizer: “quem me vê vê o Pai”(Jo 14,9), pois não há maior amor que dar a vida. E o Pai Criador é doador de vida plena para todos. A exaltação da cruz é a exaltação do amor misericordioso de Deus que em Jesus dá a vida por nós! Jesus é o Filho de Deus, na sua crucifixão, levantado ao alto, ele é sinal da salvação que vem de Deus, como a serpente de bronze levantada por Moisés no deserto.
A morte de cruz foi logo mal entendida pelos opositores de Jesus. Morrer crucificado, foi para eles, sinal de rejeição por parte de Deus. Para a cultura pagã foi visto como algo pior ainda: moeda de troca para um Deus severo e vingador. Assim, “a mística da cruz”, teria feito do cristianismo a religião dos desprezados, pobres e sofredores. O homem moderno está marcado pela rejeição da cruz, como exaltação da dor e do sofrimento. Mas não! A cruz é exaltação do amor. Este amor que não é amado!
Jesus na sua encarnação veio realmente para participar de tudo o que é humano, menos o pecado. Assim, veio para participar do sofrimento humano, mas seu ideal não é a cruz, antes a obediência, é o modo de viver a relação com o Pai, de dar testemunho dele indo até o fim, não fugindo a nenhuma dificuldade, nem mesmo da morte, para provar este amor ao Pai. Por amor ao Pai, Cristo fez-se obediente até a morte, e morte de cruz. Não que o Pai exigisse morte, mas o Pai que ama o Filho infinitamente foi correspondido pelo Filho neste amor que não fugiu à cruz mas a ultrapassou. Jesus se rebaixou por amor (Fl 2,6), para depois ser exaltado pelo amor do Pai sempre fiel. Pela cruz se chega à luz! Todo o mistério da cruz deve ser compreendido como mistério de amor e não em primeiro lugar, de justiça reparadora.
Jesus compreendeu sua morte na cruz como entrega incondicional de si mesmo nas mãos de Deus, uma solidariedade absoluta que se realiza em não fazer valer sua própria vontade ou pretensão, antes em confiá-la às mãos de Deus. Eu dou minha vida, ninguém a tira, disse Jesus. Assim a cruz se torna lugar do perdão e da reconciliação.
A cruz faz parte da nossa fé, e como escreve o papa Francisco na Evangelii Gaudium (confere a ela certa obscuridade), pois este mistério nos choca. A cruz é irmã do amor. A cruz, que está presente em todas as etapas da vida de Jesus, impede-nos de tornar os ensinamentos de Igreja, uma realidade facilmente compreensível e apreciada por todos (cf. EG n. 42). Contagiados pelo frenesi cultural de hoje, também os agentes de pastorais sofrem uma ânsia de chegar a resultados imediatos, vivendo em situações que significam alguma contradição, um aparente fracasso, uma crítica, uma cruz (cf. EG n. 82). Em um mundo de tanto sofrimento, o cristão pode ser um derrotado na primeira instância, mas sempre um vencedor na última (cf. EG n. 85), escreve o papa.
Esta manifestação da glória de Deus no amor de Cristo que dá sua vida por nós, tem consequências práticas para nós, como está na primeira carta de São João: “Jesus deu a vida por nós; por isso nós também devemos dar a vida pelos irmãos (1Jo 3,16). Quando o Evangelho diz que é preciso carregar a cruz de cada dia, não quer dizer da necessidade de sofrer ou morrer. Carregar a cruz é tomar a decisão de participar das opções de Jesus Cristo, ainda que isto signifique, isto sim, morrer para nosso egoísmo, abnegar-se, ir ao encontro da contradição e, até da morte se for o caso.
Os santos tiraram de Cristo crucificado a sabedoria que os guiou. Assim foi também com São Gaspar Bertoni. Ele tirou do mistério da cruz, toda força e dinamismo na sua ação apostólica. Viveu em meio às guerras napoleônicas que espalharam pela Europa, sofrimento, morte, miséria e perseguição à Igreja. Foi ordenado sacerdote diocesano em 20 de setembro de 1800. A 04 de novembro de 1816, na cidade de Verona, junto à Igreja dos Estigmas de S. Francisco, fundou a comunidade que foi chamada dos “estigmatinos” que viria a ser a Congregação. São Gaspar Bertoni, faleceu em junho de 1853. Apesar de seu sofrimento, manteve sempre em alta a esperança, pois somente quem viveu à sombra da cruz como ele viveu, pode ter e dar esperança ao mundo.
O misticismo de São Gaspar Bertoni foi um misticismo do “Servo Sofredor”(cf. Lc 4, 16 – 21) no serviço eclesial. O fundador dos estigmatinos viveu uma consagração, uma mística do abandono na santíssima Trindade, um abraçar a cruz de Cristo, numa total disponibilidade para a Igreja. E a Igreja mais real para nós, é aquela na qual pisamos e vivemos: a diocese em que vivemos. Sua entrega total a Deus na realização da vontade divina foi expresso no objetivo que ele propôs para a comunidade que fundou: “Missionários Apostólicos em assistência aos bispos”.
Neste ano a Congregação dos estigmatinos celebra seus duzentos anos de fundação. Nós bendizemos a Deus por isso. Nossa Diocese de Santo André, recebeu em primeiro lugar no Brasil a presença dos filhos de São Gaspar Bertoni, que hoje se encontram presentes nesta paróquia Sagrada Família, aqui em São Caetano do Sul.
A Congregação estigmatina nasceu com esta marca da eclesialidade que faz parte de seu carisma, expressa na vida em obséquio a Jesus Cristo na pessoa dos sucessores dos apóstolos. Em uma realidade na qual a Igreja estava perseguida e o Bispo de Roma preso pelo imperador francês, Deus suscitou São Gaspar Bertoni, para fundar uma congregação que ajudasse a sustentar o Povo de Deus e seus pastores.
A integridade profética de São Gaspar Bertoni em sua contemplação do mistério Pascal é a base da esperança que sustenta os estigmatinos, esperança de que pelas Chagas de Cristo, as chagas da humanidade serão curadas (cf. Is 53,5; 1pd 2,21). Congratulamo-nos com a Congregação e todos os seus membros. Agradecemos em nome da Igreja de Santo André o trabalho realizado nestes longos anos. Que sejam fiéis ao carisma do fundador e o prolonguem na Igreja.
Não podemos entender o projeto do fundador sem o carisma missionário que lhe foi dado por Deus. Impulsionados por este carisma, que os queridos irmãos estigmatinos, possam ir para águas mais profundas, como missionários e profetas da esperança e da alegria.
Neste momento difícil por que passa nosso país que já foi chamado de terra de Santa cruz, todos nós somos chamados a ser missionários da esperança, anunciando a vitória da cruz de Cristo na qual temos salvação e vida. AMÉM!
+ Dom Pedro Carlos Cipollini
Bispo Diocesano de Santo André