Diocese de Santo André

O “Sensus Fidei” na vida da Igreja

Aula Inaugural – Centro Universitário Salesiano – São Paulo/SP – Campus Pio XI – 12/02/2016

 Dom Pedro Carlos Cipollini – Bispo de Santo André-SP

Introdução

Ao iniciar esta exposição gostaria de recordar o que disse o papa Francisco em seu encontro com o clero na sua visita a Assis (Itália): “Repito-o com frequência: caminhar com o nosso povo, por vezes à frente, por vezes no meio e outras atrás: à frente, para guiar a comunidade; no meio, para animar e sustentar; atrás, para manter unida, a fim de que ninguém se atrase demais, para conservar unida e também por outro motivo: porque o povo intui! Tem sensibilidade para encontrar novas sendas para o caminho, tem o “sensus fidei”, como dizem os teólogos. O que existe de mais bonito?”[1] Nesta fala do papa Francisco, está como que resumido aquilo que se tem como “sensus fidei”, não só no que significa mas também no relacionamento entre os ministros da Igreja. O “sensus fidei” encontra sua base escriturística na concepção de um povo sacerdotal (1Pd 2,9), que tem o pensamento de Cristo (1Cor 2,16), os olhos do coração (Ef 1,16-18), o espírito de verdade (Jo 14,16-17) e a inteligência espiritual (Cl 1,9; cf. tb. Rm 11,33s; Fl 1,9; Ap 5,9).

“A teologia entende por sensus fidei (sentido/senso da fé) o dom ou capacidade dada pelo Espírito Santo àquele que crê, de perceber a verdade da fé e de discernir o que lhe é contrário. É um dom ou carisma de todos os batizados. Sua formulação mais antiga encontra-se em Vicente de Lérins: “é o que foi crido em toda parte, sempre e por todos” (Cmm. Cân. 23). O concílio de Trento vai falar de um “consenso dos fiéis” ou “senso universal da Igreja”[2], os teólogos do século XVI vão elaborar expressões aproximativas tais como: instinctus fidei, consenssus fidelium, sensus fidelium.[3] O Vaticano II vai falar de sensus fidei (LG 12) como um sentido ou sentimento sobrenatural proporcionado pelo Espírito Santo e que beneficia todo o povo de Deus a fim de que receba a Palavra de Deus, aderindo a ela, saboreando-a e colocando em prática. É a faculdade ou habilidade de penetração cognitiva da verdade da fé e de sua verificação na prática.[4]

Sobre este tema a Comissão teológica internacional publicou, um documento intitulado: “O sensus fidei na vida da Igreja”, no ano 2014. Este documento responde a um duplo objetivo. Primeiro analisa teologicamente a noção tradicional que foi reavivada pelo Vaticano II. No cruzar entre a eclesiologia renovada da Lumen Gentium e a teologia fundamental da Dei Verbum confirma o papel insubstituível do magistério na transmissão da fé, mas superando a dicotomia entre uma Igreja que ensina (hierarquia) e outra que recebe passivamente os ensinamentos (os fiéis). Recordou que, com o impulso do Espírito Santo o Povo de Deus na sua totalidade participa na função profética de Jesus Cristo e goza de uma infalibilidade in credendo, a ponto que o consensus do conjunto dos crentes constituir um testemunho oferecido à fé apostólica. Em segundo lugar este documento propõe critérios para discernir o sensus fidelium autêntico e descartar as falsidades já que, nem todas as opiniões que circulam entre os batizados derivam do sensus fidelium, embora o conjunto do povo de Deus, graças ao sentido da fé, é capaz de discernir quais são as vias do Evangelho para hoje.

  1. Sensus Fidei no Concílio Vaticano II[5]

A partir do enfoque eclesiológico pelo qual foram tratados os temas do Concílio Vaticano II, parece que o sentido que está por detrás desta definição é sobretudo dar sustentação à eclesiologia do Povo de Deus.[6] Não nos é possível examinar todos os textos conciliares a respeito do assunto, vamos no entanto examinar o texto fundamental, que é o número 12 da Constituição dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium). O contexto desse parágrafo é muito significativo para sua interpretação. Encontra-se no capítulo II – O povo de Deus, no parágrafo que trata da participação de todos os fiéis na função profética de Cristo: “O Povo santo de Deus participa também da função profética de Cristo, difundindo o seu testemunho vivo, sobretudo pela vida de fé e de caridade, oferecendo a Deus o sacrifício de louvor, fruto dos lábios que confessam o Seu nome (cfr. Hb 13,15).” Esse texto está inserido em uma importante exposição da doutrina eclesiológica, na qual se destaca a infalibilidade da Igreja in credendo e o papel do consenso universal dos fiéis: “A totalidade dos fiéis que receberam a unção do Santo (cf. Jo 2,20.27) não pode enganar-se na fé; e esta sua propriedade peculiar manifesta-se por meio do sentir sobrenatural da fé do povo todo, quando este, “desde os Bispos até ao último dos leigos fiéis” (Cf. S. Agostinho, De Praed. Sanct. 14, 27: PL 44, 980), manifesta consenso universal em matéria de fé e costumes”.[7]

A seguir, explicita a correlação entre o sensus fidei, Espírito Santo e Magistério eclesial: “com este sentido da fé, que se desperta e sustenta pela ação do Espírito de verdade, o povo de Deus, sob a direção do sagrado magistério que fielmente acata […]”.[8] E, por fim, descreve o sensus fidei a partir de seus efeitos: “O povo de Deus já não recebe simples palavra de homens mas a verdadeira palavra de Deus (cf. 1 Tes 2,13), adere indefectivelmente à fé uma vez confiada aos santos (cf. Jd 3), penetra-a mais profundamente com juízo acertado e aplica-a mais totalmente na vida.”[9]

Comentando a passagem, Salvador Pié-Ninot[10] chama atenção para os verbos usados: o sentido da fé é suscitado e mantido pelo Espírito Santo é guiado pelo sagrado Magistério, que acata fielmente; o povo aceita a palavra de Deus; adere a ela; penetra nessa palavra e a aplica à vida.

Pode ser útil retomar os elementos teológicos do sensus fidei apresentados por LG 12. Primeiramente, afirma-se que é um sentimento “sobrenatural” de caráter “pneumatológico”: é suscitado e sustentado pelo Espírito Santo. A este propósito recorde-se que da própria fé é feita idêntica afirmação por DV 5 (“para prestar a adesão da fé, são necessários a prévia e concomitante ajuda da graça divina e os interiores auxílios do Espírito Santo”), onde se descreve também o caráter carismático da compreensão da revelação (“para que a compreensão da revelação seja sempre mais profunda, o mesmo Espírito Santo aperfeiçoa sem cessar a fé mediante os seus dons”).

Em segundo lugar, trata-se de uma “peculiaridade” de “todo” o povo de Deus. No contexto mencionam-se “a totalidade dos fiéis”, “povo todo”, “bispos e fiéis leigos”. Portanto, não é algo setorial, ou de uma categoria de fiéis. Mais à frente, no capítulo quarto, sobre os fiéis leigos, na seção dedicada ao “testemunho de vida pelo apostolado dos leigos”, a Constituição LG dá um ulterior esclarecimento: “Cristo, o grande profeta, que pelo testemunho da vida e da força da palavra proclamou o reino do Pai, realiza a sua missão profética, até à total revelação da glória, não só por meio da Hierarquia, que em Seu nome e com a Sua autoridade ensina, mas também por meio dos leigos; para isso os constituiu testemunhas, e lhes concedeu o sentido da fé e o dom da palavra (cf. At 2,17-18; Ap 19,10) a fim de que a força do Evangelho resplandeça na vida quotidiana, familiar e social.”[11]

Finalmente, o texto descreve os efeitos deste dom. Como se trata de um senso da fé, está correlacionado com a Palavra de Deus (como esclarece DV 5). Com relação a ela, fala-se de recepção, adesão, penetração e aplicação. Neste mesmo sentido, DV 8, ao falar da transmissão da divina Revelação e do progresso da Tradição na vida da Igreja (cap. 2), reafirma o papel do Espírito Santo e do caráter “experiencial” e “espiritual (= sobrenatural)” do senso da fé.

Esta tradição apostólica progride na Igreja sob a assistência do Espírito Santo. Com efeito, progride a percepção tanto das coisas como das palavras transmitidas, quer por causa da contemplação e estudo dos crentes, que as meditam no seu coração (cf. Lc. 2,19.51), quer por causa da íntima inteligência que experimentam das coisas espirituais, quer mercê da pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma da verdade. Isto é: a Igreja, no decurso dos séculos, tende continuamente para a plenitude da verdade divina, até que nela se realizem as palavras de Deus”.[12]

Entre os quatro fatores mencionado por DV 8, o sensus fidei está presente no terceiro e, parcialmente, no quarto. São eles: “a assistência do Espírito Santo”, a “contemplação e o estudo dos crentes”, a “compreensão interior das coisas espirituais” e o “anúncio daqueles que, com a sucessão do episcopado, receberam o carisma certo da verdade”.

  1. Natureza do Sensus Fidei

O capítulo segundo apresenta a natureza do sensus fidei. Ele é “como instinto da fé”, “é uma espécie de instinto espiritual que capacita o crente a julgar de forma espontânea se algum ensino particular ou determinada prática está ou não em conformidade com o Evangelho e com a fé apostólica”, que decorre da própria virtude da fé e é uma propriedade dela. [13]

Ele, o sensus fidei fidelis, “não é um conhecimento reflexivo dos mistérios da fé, que desenvolve conceitos e utiliza procedimentos racionais para chegar às suas conclusões”, mas é “uma reação natural, imediata e espontânea, comparável a um instinto vital ou a uma espécie de “faro”, pelo qual o crente adere espontaneamente ao que está conforme a verdade da fé e evita o que se opõe”.[14]

Como deriva da virtude teologal da fé, o sensus fidei é infalível em si mesmo quanto ao seu objeto, a verdadeira fé, e cresce em proporção ao desenvolvimento da virtude da fé, havendo, por isso, “uma interação vital entre o sensus fidei e o modo como cada fiel vive a fé em diversos contextos de sua vida pessoal”, o que “permite ver mais claramente o valor e as limitações de uma determinada doutrina, e propor caminhos para uma formulação mais adequada. É por isso que aqueles que ensinam em nome da Igreja devem prestar muita atenção à experiência dos fiéis, especialmente a dos leigos que se esforçam para colocar em prática os ensinamentos da Igreja em áreas onde eles possuem experiência e conhecimento específicos”. [15]

As manifestações do sensus fidei na vida pessoal dos fiéis são três: “1) discernir se um ensinamento particular ou se uma determinada prática que ele encontra na Igreja é coerente ou não com a verdadeira fé pela qual ele vive em comunhão com a Igreja; 2) distinguir na pregação o essencial do secundário; 3) identificar e colocar em prática o testemunho a dar de Jesus Cristo no contexto histórico e cultural particular em que ele vive”.[16]

  1. O sensus fidei na vida eclesial

O capítulo terceiro aborda vários aspectos do sensus fidei: o seu papel no desenvolvimento da doutrina e da prática cristãs; as relações entre o sensus fidei e o Magistério e entre o sensus fidei e teologia; alguns aspectos ecumênicos do sensus fidei.

O papel do desenvolvimento da doutrina e da prática cristã do sensus fidei tem como ponto de partida a responsabilidade da Igreja inteira, hierarquia e leigos juntos, “pela revelação contida nas Sagradas Escrituras e na Tradição apostólica viva”, que é “confiada à Igreja”, isto é, o “povo santo todo, unido a seus pastores”, pois os fiéis não são apenas os destinatários passivos do que a hierarquia ensina e os teólogos explicitam, mas eles são, ao contrário, sujeitos vivos e ativos no seio da Igreja. Por isso, a fé e o sensus fidei não estão apenas ancorados no passado, o aspecto retrospectivo, mas também estão orientados em direção ao futuro, o aspecto prospectivo, o que exige um processo de discernimento. Tal processo exige tempo para chegar a alguma conclusão, onde os fiéis em geral, os pastores e os teólogos têm cada qual o seu papel a desempenhar, a fim de atingir um esclarecimento do sensus fidei e realizar um verdadeiro consensus fidelium, uma conspiratio pastorum et fidelium”. [17]

Os leigos contribuíram, desde o início do cristianismo, com o desenvolvimento da fé cristã através do testemunho da fé apostólica e em decisões sobre a fé. Houve momentos em que o povo de Deus, em particular os leigos, tenha sentido intuitivamente em que direção andaria o desenvolvimento da doutrina, mesmo quando teólogos e bispos estavam divididos sobre uma questão. Em outros momentos, quando a Igreja chegou a uma definição, a Ecclesia docens havia claramente “consultado” os fiéis, e ela indicava o consensus fidelium como que um dos argumentos que legitimava a definição. [18]

Os leigos também colaboram com o desenvolvimento moral da Igreja, pois, em algumas áreas, o ensinamento da Igreja desenvolveu-se como resultado da descoberta das exigências requeridas diante de novas situações vividas por eles. A reflexão dos teólogos e o julgamento do Magistério foram, então, baseados na experiência cristã já iluminada pelas intuições dos fiéis leigos. É o caso da abertura da Igreja aos problemas sociais, que se manifesta especialmente na Carta Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII (1896), foi o resultado de uma lenta preparação na qual os “pioneiros sociais” leigos, homens de ação e de pensamento, desempenharam um papel principal.[19]

As relações entre o sensus fidei e o Magistério acontece quando o Magistério “escuta o sensus fidelium, pois, em matéria de fé, os batizados não podem ser passivos”, e, por isso, eles “não só têm o direito de serem ouvidos, mas também as suas reações ao que está sendo proposto como pertencente à fé dos Apóstolos devem ser consideradas com maior seriedade, porque é por toda a Igreja que a fé apostólica é sustentada no poder do Espírito. O Magistério não tem a responsabilidade exclusiva. Ele deve, portanto, referir-se ao senso da fé de toda a Igreja” e ele “precisa ter formas por meio das quais possa consultar os fiéis”. O documento situa a liturgia como o lugar particular onde acontece a “ligação entre o sensus fidelium e o Magistério”, pois a Eucaristia plasma e molda o sensus fidelium, e isso contribui fortemente para a formulação e o aperfeiçoamento das expressões verbais de fé, pois é aí que o ensinamento dos bispos e dos Concílios é, em última análise, “recebido” pelos fiéis”, de acordo com a fórmula lex orandi, lex credendi. [20]

De outro lado, o Magistério alimenta, discerne e julga o sensus fidelium, pois “o julgamento sobre a autenticidade deste pertence, em última análise, não aos próprios fiéis nem à teologia, mas ao Magistério. No entanto, como já foi dito, a fé à qual o Magistério está a serviço é a fé da Igreja, que está viva em todos os fiéis”.[21]

As relações entre o sensus fidei e a teologia são duas: os teólogos dependem e refletem o sensus fidei. Dependem, porque o sensus fidei constitui um fundamento e um locus para o seu trabalho, além do que a fé que eles estudam e explicam vive no povo de Deus e “os teólogos ajudam os fiéis a expressar o sensus fidelium autêntico, lembrando-lhes as linhas essenciais da fé e ajudando-os a evitar desvios e confusões causadas pela influência de elementos imaginários provenientes de outros lugares”. Os teólogos refletem sobre o sensus fidelium, porque ele não se identifica pura e simplesmente com a opinião da maioria dos batizados em uma determinada época, e, por isso, a teologia deve fornecer princípios e critérios que permitam realizar um discernimento, especialmente por parte do Magistério. Também a teologia ajuda os fiéis a conhecer com clareza e precisão o sentido autêntico das Escrituras, o verdadeiro alcance das definições conciliares, os conteúdos próprios da Tradição, bem como as questões que permanecem em aberto. [22]

  1. Requisitos para uma participação autêntica no sensus fidei

O capítulo quarto do documento mostra que não há uma única disposição, mas sim um conjunto de disposições, influenciado por fatores eclesiais, espirituais e éticos, os quais devem ser levados conjuntamente. Estas disposições, por sua vez, podem ser utilizadas como critérios para discernir o autêntico sensus fidei. E são as seguintes:

  1. a) A participação na vida da Igreja: Uma pertença formal à Igreja não é suficiente, mas uma participação ativa na vida da Igreja significa oração constante (cf. 1Ts 5,17), participação ativa na liturgia, especialmente a Eucaristia, recepção regular do sacramento da reconciliação, discernimento e exercício de dons e carismas recebidos do Espírito Santo, e participação ativa na missão da Igreja e na sua diakonia. Isso supõe a aceitação da doutrina da Igreja em matéria de fé e moral, a vontade de seguir os mandamentos de Deus e a coragem de exercer a correção fraterna como também de submeter-se. Além disso, uma solidariedade ativa com a Igreja, que vem do coração, um sentimento de fraternidade com outros membros fiéis e com toda a Igreja, e, disto, um instinto para perceber quais são as necessidades da Igreja e os perigos que a ameaçam. É o sentire cum Ecclesia, necessário para todos os fiéis; ela une todos os membros do povo de Deus em sua peregrinação. Ela é a chave do seu “caminhar juntos”.42
  2. b) A escuta da Palavra de Deus: É necessária uma escuta profunda e atenta da Palavra de Deus, que é transmitida de geração em geração na comunidade de fé, e uma resposta do coração (cf. 2Cor 1,20). A coerência com a Escritura e com a Tradição é o indicador principal de tal escuta. Também é necessário estudar cientificamente a Bíblia e o testemunho da Tradição.
  3. c) A abertura à razão: Como a fé e a razão caminham juntas, é preciso aceitar o papel próprio da razão na sua relação com a fé.
  4. d) A adesão ao Magistério: É necessária a atenção ao Magistério da Igreja e a vontade de escutar o ensinamento dos pastores da Igreja, como um ato de liberdade e profunda convicção.
  5. e) A santidade – a humildade, a liberdade e a alegria: A santidade é a vocação de toda a Igreja e de cada crente. Ser santo significa pertencer fundamentalmente a Deus em Jesus Cristo e na sua Igreja, ser batizado e viver a fé no poder do Espírito Santo. Constata-se que, na história da Igreja, os santos são os portadores da luz do sensus fidei. Porque ele basicamente requer imitatio Christi (cf. Fl 2,5-8), a santidade implica essencialmente humildade. Essa humildade é oposta à hesitação ou à timidez; ela é um ato de liberdade espiritual. E um sinal claro da santidade é “paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17; cf. 1Ts 1,6). Esses dons se manifestam antes de tudo em um nível espiritual, e não psicológico ou emocional. É a paz do coração e alegria tranquila daquele que encontrou o tesouro da salvação, a pérola de grande valor (cf. Mt 13,44-46).
  6. f) A busca da edificação da Igreja: A manifestação autêntica do sensus fidei contribui para edificar a Igreja como um só corpo, sem nutrir dentro dela divisões ou particularismos.

  1. Sensus fidei e sua aplicação na prática

Os aspectos ecumênicos do sensus fidei não estão incluídos nas aplicações práticas, mas podem ser abordados aqui, pois “duas questões específicas relativas ao sensus fidelium surgem no contexto do diálogo ecumênico, no qual a Igreja Católica está empenhada de forma irreversível”: primeiro, não se pode considerar como verdadeiras e vinculantes apenas as doutrinas que tenham obtido o consentimento comum de todos os cristãos e que expressam o sensus fidelium, pois os participantes católicos não podem suspender o próprio consentimento às doutrinas reconhecidas que a Igreja Católica possui como próprias; segundo, que os cristãos separados participam e contribuem de alguma forma ao sensus fidelium e que o diálogo ecumênico ajuda a aprofundar e a esclarecer a compreensão que ela mesma tem do Evangelho.[23]

A primeira aplicação é quanto à religiosidade popular, pois esta provém do sensus fidei e a manifesta, por isso deve ser respeitada e promovida, e é a primeira e fundamental forma de inculturação da fé.[24]

Outra aplicação é a relação entre o sensus fidei e a opinião pública. Sem dúvida, ela é uma das questões mais delicadas nos dias de hoje, pois a opinião pública implica a maioria, tanto dentro quanto fora da Igreja.[25]

Hoje, ouve-se muito mais frequentemente a voz dos leigos na Igreja, com posições diversas. Mas as novas redes de comunicação, seja dentro ou fora da Igreja, exigem novas formas de atenção e crítica, bem como a renovação dos métodos de discernimento. Isto porque algumas influências provenientes de grupos com interesses particulares não são compatíveis, ou não inteiramente, com a fé católica, além de haver pressões para enfraquecer o papel da fé no debate público ou para adaptar a doutrina cristã tradicional aos interesses e às opiniões modernas.[26] Assim, não se pode pura e simplesmente identificar o sensus fidei à opinião pública ou da maioria: o sensus fidei não pode assimilar a opinião pública da sociedade como um todo. A fé, não a opinião, é o ponto de referência ao qual é necessário prestar atenção. Na história do povo de Deus, muitas vezes não foi a maioria, mas uma minoria que realmente viveu a fé e a testemunhou. Por isso, é particularmente importante discernir e escutar as vozes dos “pequeninos que creem” (Mc 9,42).

Outra aplicação diz respeito aos meios para consultar os fiéis. É um direito dos fiéis serem consultados. A prática não é novidade na Igreja.[27]

Depois do Concílio Vaticano II, foram estabelecidos vários meios institucionais pelos quais os fiéis possam ser ouvidos de maneira mais formal. Esses são os Concílios particulares, aos quais os presbíteros assim como outros seguidores de Cristo podem ser convidados (cânon 443, § 4); os sínodos diocesanos, aos quais o bispo diocesano pode convidar os membros do laicato (cânon 443, § 4); o conselho pastoral de cada diocese, que se compõem de “fiéis em plena comunhão com a Igreja Católica, clérigos, membros de institutos de vida consagrada, ou principalmente leigos” (cânon 512, § 1) e conselhos pastorais das paróquias, “nos quais os fiéis ajudam a promover a ação pastoral, juntamente com os que participam do cuidado pastoral da paróquia em virtude do próprio ofício” (cânon 536, § 1).

  1. A novidade do Documento

Podem-se apontar duas novidades de fundo, presentes no Documento, que correspondem ao elã teológico presente nos documentos do Vaticano II: a pneumatologia e a teologia do laicato do Vaticano II.

Falar de sensus fidei/sensus fidelium supõe a ação do Espírito Santo na Igreja, o que aponta para o modo como o Vaticano II compreendeu e expressou a presença do Espírito Santo na Igreja. O concílio entendeu o mistério de Deus de forma trinitária e, por consequência, a própria Igreja, o que comporta, além disso, a recíproca implicação epistemológica e metodológica entre teologia trinitária e eclesiologia, ou seja, entre Trindade e Igreja.

No Concílio Ecumênico Vaticano II, é encontrada de forma clara a afirmação da presença e da ação do Espírito Santo na Igreja, especialmente com a Lumen Gentium, por meio da citação da frase de Cipriano no número 4, e com a Unitatis Redintegratio, no número 2, e, por isso, a Igreja passou a ser entendida como imagem da comunhão (communio) trinitária.[28]

Afirmar que todos os fiéis não erram no sentido da fé implica em reconhecer a teologia do laicato e levá-la a sério. O tema do leigo revelou-se como uma das grandes novidades teológicas do Vaticano II, que, desse modo, recuperou a compreensão teológica dos fiéis leigos na Igreja e no mundo.

Conclusão

A escuta do povo de Deus como princípio pastoral aparece como uma das conclusões mais importantes que podemos tirar do que até aqui refletimos.

A importância do sensus fidei na vida da Igreja foi fortemente enfatizada pelo Concílio Vaticano II sem falar da importância que dá ao leigo na Igreja a partir do batismo: na Igreja Povo de Deus todos tem a mesma dignidade na diversidade de ministérios. O Papa Joao Paulo II vai recordar o que ensina o Vaticano II ao falar dos fiéis leigos como participantes do múnus sacerdotal, profético e real de Jesus Cristo.[29]

Considere-se que o povo de Deus aprofunda a fé com reto juízo e a aplica mais plenamente à vida. A Dei Verbum confirma este ensinamento, quando diz que cresce a compreensão tanto das coisas quanto da palavra transmitida, seja com a contemplação e o estudo dos fiéis, os quais a meditam em seus corações (cf. Lc 2,19 e 51), seja com a profunda inteligência que eles provam das coisas espirituais, seja com a pregação daqueles os quais, com a sucessão episcopal receberam um carisma certo de verdade.[30]

Todo o povo de Deus adere, unidos aos seus pastores, ao sagrado depósito da Palavra de Deus confiado à Igreja e persevera constantemente no ensinamento dos apóstolos e na comunhão, na fração do pão e nas orações (cf. At 2,42) de modo que no acolher, praticar e professar a fé transmitida se cria uma singular unidade de espírito entre os bispos e os fiéis[31]. Consequentemente, a escuta do povo de Deus aparece como uma regra e um princípio pastoral irrenunciável na vida da Igreja.

Fica evidente que o sensus fidelium seja uma função de compreensão, profissão e transmissão da fé que diz respeito a todos os membros da Igreja e não somente à hierarquia e aos teólogos.[32] Consequentemente, escutar o povo de Deus aparece como uma regra e um princípio pastoral irrenunciável na Igreja. Respeitando a competência dos carismas, é necessário evitar a separação entre Igreja docente e Igreja discente, no sentido de que todos são discípulos do mesmo mestre: Jesus Cristo.

Grande conhecedor da Tradição da Igreja, o cardeal John Newman insistiu muito entre a articulação do sensus ecclesiae e o sensus fidelium. Ele recorda que entre o Concílio de Nicéia (325) e o concílio de Constantinópla (381), foi o povo cristão que fiel ao seu batismo, sustentou e conservou a verdadeira fé, enquanto não poucos bispos, até mesmo de grandes dioceses, caíram na heresia (arianismo), foi este povo fiel que sustentou os grandes e solitários confessores como Atanásio, Ilário, Eusébio de Vercelli entre outros.[33]

A escuta do povo de Deus se revela importante na obra da evangelização e de enculturação do Evangelho, porque nada pode substituir a experiência vivida pelo povo de Deus, o qual “reflete o genuíno sentido da fé que não se pode nunca perder de vista”.[34] O sensus fidei diz ainda respeito à estrutura sinodal e ao diálogo na Igreja.[35]

Enfim, o princípio pastoral da escuta ao povo de Deus não está em contradição com a constituição hierárquica da Igreja, mas exalta a natureza da Igreja como “comunhão orgânica” e portanto envolve todos os membros da Igreja.

[1] PAPA FRANCISCO, Visita Pastoral a Assis, Encontro com o clero e os consagrados, 04/10/2013.

[2]O Concílio de Trento fala de um universus Ecclesiae sensus, como salvaguarda e garantia da verdadeira fé frente aos erros (cf. E. Denzinger in El magistério de la Iglesia, Herder, Barcelona 1963, n. 870).

[3] VORGRIMLER Herbert., faz distinção entre estas várias expressões vendo as nuances entre elas e define sensus fidei como “espécie determinada de conhecimento, que provém da fé e se refere ao conteúdo essencial dessa mesma fé”, cf. in Do sensus fidei para o consensus fidelium, cf. in Concilium n. 200 (1985), p. 6. Santo Tomás de Aquino fala de uma conaturalidade com a verdade – que é Cristo – dada pelo Espírito Santo (cf. Sum.Teologiae, q. 45, a.2).

[4] Cf. PIÉ-NINOT, Salvador, “Sensus fidei”, in Latourelle – R. Fisichella, Dizionario di teologia fondamentale, Assis, Cittadella, 1990, pp. 1131 – 1134.

[5] A respeito do sensus fidei no Vaticano II, indicamos para consulta: CATELAN FERREIRA, A.L., O ensino do Magistério a respeito do sensus fidei, in Teocomunicações, Porto Alegre, 2015, v. 45, pp. 136-157; HACKMANN, G. L. B., O documento da Comissão Teológica Internacional sobre o sensus fidei, Teocomunicações, Porto Alegre, 2015, v. 45, pp. 117.

[6] KUSMA C., Senso da Fé in VVAA, Dicionário do Vaticano II, Paulus/Paulinas, S. Paulo, 2015, p.887

[7] Vaticano II, Lumen Gentium n. 12

[8] Idem

[9] Ibidem

[10] Cf. O´DONELL, C. – PIÉ-NINOT, S., (orgs), in Dicionario de Ecclesiologia, Madrid, San Pablo, 2001, p. 985-986.

[11] Idem n. 35

[12] Vaticano II, Dei Verbum, n. 8

[13] cf. Comissão Teológica Internacional, O sensus fidei na vida da Igreja, n. 32 – 49

[14] cf. id. n. 54

[15] Cf. id., n. 55, 57 e 59

[16] Cf. id., n. 60 – 65

[17] Cf. id. n. 66, 69 e 71

[18] Cf. id., n. 72

[19] Cf. id., n. 73

[20] Cf. id., 74 – 75

[21] Cf. Id., n. 77

[22] Cf. id., 81, 83 e 84

[23] Cf. Comissão Teológica Internacional, O sensus fidei na vida da Igreja n. 86

[24] Idem n 110 – 112

[25] Idem n. 113

[26] Idem 116 – 117

[27] Idem n.120 – 122

[28] Cf. KASPER W., Chiesa Cattolica, Brescia, Quariniana, 2012, p. 129

[29] Cf. in Exortação Apostólica Christu fideles Laici n. 14

[30] Dei Verbum n. 8

[31] Idem n. 10

[32] Cf. VITALI D., Sensus fidelium. Uma funzione ecclesiale di intelligenza dela fede, Morcelliana, Brescia,1993.

[33] Cf. NEWMAN J. H., Sulla consultazione dei fedeli in matéria di dottrina, Dialogo – Brescia, Morcelliana, 1991, p. 129-130

[34] JOÃO PAUYLO II, Redemptoris missio n. 54

[35] Há o antigo princípio retomado pelo Direito Canônico a propósito da colegialidade: “o que diz respeito a todos como indivíduos, por todos deve ser aprovado” Código de Direito Canônico 119,§3

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