A liderança deve abrir mão de suas vontades para colocar-se a serviço do grupo
Dentre as inúmeras condições dos líderes, uma delas é ser um para-raios da carência humana. Tenho me deparado com constatações que valem uma boa reflexão sobre elas.
Já é sabido, há muito tempo, que existe uma transferência afetiva nas relações humanas. Freud nos fala das projeções inconscientes. No entanto, Freud saber não faz muita diferença quando a questão está na prática.
Muita gente vive sem sequer tocar em seus limites e fragilidades a vida toda. Lançam sobre as pessoas suas expectativas, vivem em função do que desejam e julgam ser certo, distribuem culpas e depois reclamam que as frustrações não têm fim.
Ao falarmos do contexto religioso, há um peso maior ainda. Há uma suposta obrigatoriedade de que a liderança religiosa dê conta de toda e qualquer carência lançada sobre ela; afinal, ela precisa ser dotada de perfeição. E a perfeição, sabemos, varia de acordo com a necessidade de quem olha para ela.
Os líderes acabam sobrecarregando-se de um peso que não lhes é devido. E as pessoas criam relações dependentes e enraizadas na carência. Muitos não procuram o Cristo na Igreja. Isto não é uma acusação, um dedo apontado. Não! Mas uma constatação. Há muito cristão atrás de alguém que caia em seus joguinhos de transferência afetiva e manipulação. Isso é inconsciente, mas precisamos começar a tomar consciência.
Vou ser mais claro. Quantas pessoas você já viu se decepcionar apenas porque o padre não lhes desejou bom-dia ou não ouviu o que elas disseram? Quantos cristãos estão abrindo mão até de coisas que são boas e saudáveis para si, com o intuito de agradar seu coordenador? E ainda quantos se dedicam, sem reservas, focados em receber elogios e gratidão das lideranças religiosas?
Onde está Jesus nisso tudo? Infelizmente, as relações religiosas podem cair nas relações de carências. A proposta de Cristo é outra; é justamente que as relações promovam a maturidade humana e a liberdade interior que vem do autoconhecimento e abertura ao outro. Nos encontros que Jesus viveu no Evangelho, em nenhum deles Ele alimentou as relações por dependência. Em todas houve o processo de autonomia do outro.
Liderança, acima de tudo, é serviço
Não podemos esquecer que os líderes também são levados a assumir tarefas por pura necessidade de aprovação, aplausos e fama. Artistas passam por isso também. Quantos líderes abrem mão de si pela simples necessidade de, depois, serem reconhecidos por isso! Ou porque não suportam desagradar o outro.
Há muita gente competindo para ser mais caridoso dentro da Igreja. Uma competição que é ditada pela necessidade da consciência pesada. Sim! Muitos são caridosos, porque precisam prestar contas a si mesmos. Poucos caridosos estão sendo altruístas de verdade, ocupando-se da promoção do outro.
Não quero, com este artigo, promover uma depreciação da vivência cristã. Pelo contrário, escrever isso é um esforço para mudar essa situação. Há muito cristão que precisa viver por Cristo, há muito cristão que tem sido idólatra, conduzido por suas frustrações, carências e transferências afetivas, e perderam Jesus de vista há muito tempo.
Entrar no processo de seguimento de Jesus é ter a coragem de tocar em suas próprias feridas para ser curado. Isso exige muito de nós! É um processo doloroso e nem sempre rápido, e isso explica porque poucos, bem poucos, assumem essa proposta de Cristo; porque muitos O deixaram sozinho na cruz, porque seus discípulos fugiram e O negaram. Explica porque o símbolo da santidade é a cruz, quando o crucificado está levantado e sobra apenas Ele com si mesmo, na pior percepção de si. É compreensível!
Fonte: Canção Nova