Diocese de Santo André

O mês da Bíblia na Igreja do Brasil e o livro de Josué

Escrita em pergaminhos ou folhas de papiro, impressa em livros, talhada em pedras ou esculpida nos corações, a Bíblia é o livro traduzido para mais de 2.935 línguas diferentes1, ainda assim, continua um livro muitas vezes desconhecido. Muitos a têm em casa, mas não a abre. Outros – como a um amuleto – a deixam aberta num lugar de destaque na sala, mas não a leem. Hoje em dia, a Bíblia desperta cada vez mais, o interesse do povo cristão, principalmente nos círculos bíblicos, local que por excelência, orienta a reflexão sobre a vida.

A Igreja do Brasil, pós Concílio Vaticano II, nos trouxe um valioso reforço e impulso para a prática da leitura comunitária da Bíblia escolhendo e determinando o mês de setembro o mês da Bíblia para toda nossa Igreja. Tal mês foi determinado a partir de 1971, entretanto, a Igreja do Brasil, já desde 1947 tinha o hábito de guardar o último domingo de setembro como o dia da Bíblia. Isso se deu em homenagem a São Jerônimo, o qual nasceu em 340 e faleceu em 420 d.C., tendo seu dia comemorativo celebrado em 30 de setembro. São Jerônimo foi o tradutor da Bíblia da língua hebraica e grega para o latim, originando a tradução chamada de Vulgata (Séc. V d.C.). A Bíblia surge no meio de um povo do Oriente, o Povo de Israel. Este povo cria uma literatura que relata sua história, suas reflexões, sua sabedoria, sua oração. Toda essa literatura é inspirada pela sua fé no único Deus que lhes revela: “Estou sempre com vocês!”. Com esta certeza de fé no coração, todos os anos a Igreja escolhe um entre os 73 livros que compõe nossa Bíblia católica para estuda-lo em comunidades.

Para o ano de 2022, o livro escolhido foi a livro de Josué e o lema é: “O Senhor teu Deus está contigo por onde quer que andes” (Js 1,9). Ao se aproximar do livro de Josué, em geral, o ouvinte-leitor fica perplexo, pois está repleto de relatos de guerras, crueldades, massacres etc. Isso se dá, porque a história e as vicissitudes dos filhos de Israel, narradas no AT, seguem o mesmo padrão das narrativas do Antigo Oriente Próximo no que se refere a relatos de guerras, duelos, conquistas, ocupações, destruições de territórios, deportações etc.

Percebemos, portanto, que o antigo Israel estava plenamente inserido no seu tempo, os autores do livro de Josué fizeram uso da mesma linguagem e imagens que os povos a ele circunvizinhos, isso explica porque no livro de Josué se encontra esse modo, violento e terrível aos nossos olhos, de narrar a entrada e a conquista na terra de Canaã, fazendo uso de um vocabulário militar.

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O título do livro
O título do livro advém do seu personagem principal, Josué que se chamava Oseias (cf. Nm 13,8 e Dt 32,44). “da tribo de Efraim, Oséias filho de Nun” – “Acompanhado de Josué filho de Nun, Moisés se apresentou e recitou para o povo todas as palavras desse cântico.” Este nome, porém, foi mudado por Moisés, quando foi eleito para representar a sua tribo na campanha de exploração da terra de Canaã (cf. Nm 13,16). “São esses os nomes dos homens enviados por Moisés para fazer o reconhecimento do país. A Oséias filho de Nun, Moisés deu o nome de Josué.”

A mudança do nome demonstra que Moisés possuía autoridade sobre Josué, que por vontade do Senhor, acabará de se tornar seu sucessor.
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Razão para a mudança do nome
Os dois nomes, Oseias e Josué vêm da mesma raiz hebraica `ys` (הוֹשֵׁ֥עַ) e (יְהוֹשֻֽׁעַ) que significa “causar libertação, salvar”. (ação reflexiva ou passiva Nifal do verbo). Na mudança do nome, Moisés deslocou o sentido da ação do verbo, transformando Oseias em um nome teofórico, pois recebeu as iniciais do Tetragrama Sagrado, (יהוה) passando a significar “O Senhor é salvação” ou “O Senhor salva”. O livro de Josué, não relata somente uma história passada, mas descreve nosso presente e anuncia nosso futuro. Ele, aliás, nos antecipa o novo Josué que havia de vir: o Messias.

Josué e Jesus, aliás, têm o mesmo nome em hebraico, cujo significado é “Deus salva”. Eis, portanto, que somos convidados a uma leitura que vai muito além da simples leitura de um “livro histórico”! A Tradição Católica classifica o livro de Josué entre os “livros históricos”, quais sejam: Josué, Juízes, Rute, Samuel e Reis.

Na Tradição Judaica, (Yehoshua) Josué é o primeiro dos livros proféticos. Com ele inicia a segunda seção da Bíblia Hebraica chamada Neviim (“profetas”); abrangendo os livros de Josué a Reis (sem Rute) conhecidos como profetas anteriores. E de Isaías a Malaquias (sem Daniel) conhecidos como profetas posteriores. A Bíblia hebraica valoriza melhor esses livros, dando-lhes o título de “Primeiros Profetas”. Assim, quando se passa da Lei aos Profetas, eles surgem como os primeiros, estando bem unidos às promessas. Desse modo, não se perde o fio condutor. O título de “Primeiros Profetas” lhes cabe muito bem: eles são, de fato, bastante proféticos, pois sua redação final se efetuou no tempo dos Profetas.
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Quem foi Josué?
Na tradição judaica, Yehoshua (Josué) foi profeta e guerreiro, legislador e juiz, ele foi o principal discípulo de Moisés. Durante 40 anos permaneceu fielmente ao lado de seu mestre, servindo-o, acompanhando-o, absorvendo seus ensinamentos. Foi a Josué que Moisés transmitiu a Lei Oral que recebera de Deus, no Sinai, incumbindo-o de preservá-la e transmiti-la aos anciãos, e estes, por sua vez, às gerações seguintes. (cf. Ex 33,11; 24,13; 32,17; Nm 11,28; 13,8.16; Dt 1,38; 32,44; Js 1,1)

Diz o Talmud (livro que contém os comentários da Tradição Oral de Israel) que “o rosto de Moisés era como o Sol e o de Josué como a Lua”, pois Josué era o reflexo dos ensinamentos de seu mestre. Esta era a sua grandeza, a razão pela qual Deus o escolhera para dar continuidade à missão de seu antecessor, o maior profeta do Povo Judeu (cf. Dt 34,10).

O livro pode ser dividido em três partes: a) A conquista da Terra Prometida (Js 1-12); b) A partilha da terra entre as tribos (Js 13-21); c) O fim da carreira de Josué (Js 22-24).

O tema principal do livro de Josué é a entrada na Terra Prometida, e a importância da obediência ao Senhor, o que faz dele um livro indispensável: “Depois do memorável êxodo do Egito e da aliança no Sinai, a chegada a Canaã é o momento principal e determinante de toda a história de Israel”.

Logo no primeiro versículo, os autores marcam a continuidade entre Moisés e Josué: “Depois da morte de Moisés, servo do Senhor, o Senhor falou a Josué, filho de Nun, ou auxiliar de Moisés e lhe disse: “Moisés, meu servo, morreu; agora, levanta-te! Atravessa este Jordão, tu e todo este povo…” (Js 1,1-2).

A missão da qual Deus incumbira Josué era árdua. Ao entrar na terra de Canaã a vida do Povo de Israel passaria por uma mudança radical, pois terminariam os milagres sobrenaturais através dos quais Deus conduziu e cuidou de seu Povo. Durante 40 anos o alimento descia dos céus, a água brotava de poços que surgiam onde quer que acampassem e uma nuvem os guiava. Mas, assim que entrassem na Terra teriam que lutar para a conquistar e se defender. Eles teriam que produzir seu próprio sustento, os Filhos de Israel passariam a levar uma vida normal, sem, no entanto, esquecer que a fonte de tudo é Deus.

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Autoria do Livro
O Livro de Josué é anônimo. O Talmude Babilônico, escrito entre os séculos III e V, foi o primeiro a atribuir autores a vários dos livros da Bíblia hebraica: cada livro, segundo ele, foi escrito por um profeta e cada profeta foi testemunha dos eventos descritos no livro que leva seu nome, incluindo Josué. Mas essa ideia já não é mais aceita hoje inclusive na tradição judaica. Atualmente concorda-se que Josué foi composto como parte de uma obra maior, a história deuteronômica, que começa no Deuteronômio e vai até os Livros de Reis

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Data
O Livro de Josué cobre cerca de vinte anos da história de Israel sob a liderança de Josué, assistente e sucessor de Moisés. A data comumente aceita da morte de Josué é por volta de 1375 aC. Portanto, o livro engloba a história de Israel entre 1400 aC e 1375 aC e é provável que tenha sido compilado pouco tempo depois.

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Entrando em 
Eretz Israel (terra de Israel)
Os Filhos de Israel, acampados em Sitim, em frente a Jericó, a leste do rio Jordão, estavam prestes a entrar em Canaã. A região era, na época, habitada por sete tribos que viviam em cidades fortificadas, cada uma governada por seu próprio “rei”. O livro, primeiramente oferece ao ouvinte-leitor a impressão de que a conquista da terra foi um sucesso e que os filhos de Israel entraram e se apossaram completamente do território. Contudo, o confronto entre certos textos do livro de Josué com o livro de Juízes revela uma visão diversa sobre a posse da terra, afirmando que a conquista não foi total, que cidades cananeias e grupos cananeus permaneceram no território (cf. Js 11,22-23; 15,13-19.63 Jz 1,1-2,5: especialmente Jz 1,19;2,3;3,1-6).

A narrativa procurou ressaltar o valor teológico e religioso dos fatos. A história da conquista, então, é narrada para colocar em relevo o cumprimento das promessas divinas. Nessa história, Josué é o servo fiel e obediente ao Senhor que, na verdade, desponta como ilustre protagonista da conquista.

Antes de atravessarem o rio Jordão, Deus revela a Josué que Ele irá realizar milagres para “engrandecê-lo perante os olhos de Israel” (Ibid, 3,7) e consolidar a confiança do povo em seu novo líder. Os milagres seriam uma prova de que o Senhor estava com Israel.  Na manhã de 10 de Nissan (março/Abril), com a Arca Sagrada carregada pelos Cohanim (sacerdotes), abrindo o caminho, o Povo de Israel chega às margens do rio. Relata o Livro de Josué que, quando “os pés dos Cohanim que carregavam a Arca, molharam-se na beira da água (…) pararam as águas (…) e se levantaram verticalmente, como uma muralha”. (Ibid, 3, 15-16). O leito do rio secou em frente a Jericó e o Povo Judeu passou a pé, a seco, como fizera outrora no Mar Vermelho.

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Síntese
O livro de Josué não foi escrito para oferecer um relato detalhado de como se deu a conquista da terra de Canaã. O principal objetivo do livro é transmitir uma mensagem religiosa, ao evidenciar certos episódios em torno da conquista, a fim de demonstrar, acima de tudo, o protagonismo do Senhor, Deus de Israel, como o autentico conquistador de Canaã. Ele é o Senhor dos Exércitos, que agiu através de Josué, um líder obediente, capaz de manter as tribos unidas, como se fossem “um só homem”.

Do início ao fim, o livro atesta que o Senhor manteve a palavra dada a Josué, é fiel ao dizer: “estarei contigo” (cf. Js 1,5.9.17;23,3.10) Por pertencer, na Bíblia Hebraica, aos profetas anteriores, o livro é permeado por uma visão profética da história. O que se deu durante a conquista era uma profecia das futuras realizações, mas também dos futuros fracassos.

A entrada e a conquista de Canaã apontam para a salvação estritamente ligada à fidelidade ao Senhor, às suas promessas e ao impacto da aliança. A terra boa e fértil, é de um lado, pura dádiva do Senhor, porém, de outro lado, é também fruto do empenho humano para guardá-la e protegê-la de tudo o que pode ferir a aliança. Entrar em Canaã e viver dos seus frutos evoca o paraíso perdido, mas reencontrando na bondade e na misericórdia do Senhor, que nunca abandona a sua sublime criatura, criada à sua imagem e semelhança (Gn 1,26-27)

Artigo por Diácono Luciano José Dias, paróquia Sant’Anna, Ribeirão Pires

Bibliografia:
___Dias, Elizangela Chaves; Leonardo Agostinho Fernandes. O cerco de Jericó: análise de Josué 2 e 6. São Paulo: Paulinas, 2022.

___Rabi Scherman, Nosson e Rabi Zlotowitz, Meir, The Rubin Edition of the Prophets: Joshua and Judges, The Early Prophets – with a commentary anthologized from the Rabbinic writings, ArtScroll Series Rabi Munk, Elie, The Call of the Torah, an anthology of interpretatios and commentary on the Five Books of Moses, Ed. Mesorah Publication.

___O Livro de Josué com comentários do Rabino Avraham Blau, Ed. Maayanot Wiesel, Elie, Five Biblical Portraits, Ed. University of Notre Dame Press 1 Peitoral usado pelo Cohen Gadol, onde estava gravado o Nome de D’us e das Tribos. As respostas a questões levantadas eram transmitidas por letras que se iluminavam.

___SIFREI OR HAHAIM. Midrash Tanhuma HaMefuar. Sifrei Or HaHaim. Israel: Bene Beraq, 1998.

___SONCINO (org.). Midrash Rabbah: Translated by H. Freedman and Maurice Simon. London: Soncino Press, 1939.

___ZECHER HANOCH (org.). Midrash Rabbah Im Kol HaMeforshim – Al Hamisha Humshei Torah VeHamesh Meguiloth Mehedurath Vilna VeMehedurath Etz Yosef. Meheduroth Zecher Hanoch. Jerusalem: Vagshal Publishing Ltd., 2001.

1 Dados da Sociedade Bíblica Unidas 2015.

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