“BEBER DO PRÓPRIO POÇO”: CULTIVAR A VIDA INTERIOR EM UM MUNDO FRAGMENTADO
11/04.2017
Dom Pedro Carlos Cipollini – Bispo de Santo André
Introdução
Existe um choque entre a imagem teológica do presbítero e a imagem sociológica do mesmo. Na primeira, o presbítero é exaltado e na segunda, diminuído.
Não devemos renunciar à imagem teológica e, no entanto, também não devemos desconhecer a imagem sociológica que se faz do padre, em um tempo de inapetência para assumir o compromisso eclesial como em nossos dias.
“É inegável que vivemos em tempo de mudanças, ou mudança de época como se convencionou chamar. E isto provoca crises. A sociedade e a Igreja vivem hoje em condições de intempérie e de certo desvalimento, há um desconforto geral. A mesma condição intensamente secular do presbítero diocesano exige que ele viva, em certo sentido, na intempérie” (J. Uriarte).
Há um descompasso entre o que as pessoas buscam na religião (soluções e milagre) e o que oferecemos (a Palavra de Deus e os Sacramentos da fé que nos fortalecem como discípulos e missionários).
Por isso, não vivemos tempos de otimismo e sim de confiança, não são tempos de êxito, mas sim de FIDELIDADE.
VOCÊ JÁ SE SENTIU ASSIM?
Inseguro?
Perdido no deserto?
Caminhando sozinho?
Levados na esteira da crise de autoridade da Igreja, os sacerdotes, viram diminuídas sua autoridade moral e capacidade de conduzir e de oferecer orientação espiritual. Daí a baixa autoestima que, muitas vezes, os padres apresentam. Em meio a tudo isto, é preciso retomar sempre a fidelidade à oração e à lectio divina, que ensinam a escutar silenciosamente o que Deus nos diz nos acontecimentos do dia a dia.
A guarda da Palavra de Deus torna-se para o padre, uma rocha firme de salvação e a base de nossa vida espiritual. “O silêncio é mistério do século futuro, as palavras são utensílios deste mundo” (Isaac o Sírio in Hom. 56)
Mais que nunca, em nossos dias, é imprescindível o cultivo de uma espiritualidade forte, capaz de sustentar o cristão. Sabemos que o equilíbrio entre a interioridade e a exterioridade é uma condição básica da saúde humana.
O homem sem vida interior cai num mecanismo que desfigura a realidade: simplifica o que é complexo e complica o que é simples.
A vida de uma pessoa consagrada, de um presbítero não poderá ser fecunda se não alcançar a harmonia entre interioridade e exterioridade. Por isso, a necessidade de parar para refletir, para cultivar a espiritualidade, de fazer silêncio.
1) O autoconhecimento
De tempo em tempo temos de parar e refletir, meditar, fazer silêncio. Este é um tempo privilegiado para escutar Deus falando dentro de nós, falando de mansinho (é a brisa que passa 1Rs 19, 11-13), tentando mostrar seu plano para cada um de nós.
- Sim, Deus tem um plano para cada um! É necessário que cada um descubra qual é este plano, que o aceite, que o cumpra: “Meu alimento é fazer a vontade de meu Pai” (Jo 4,34). Um coração que escuta, aproxima-se cada vez mais daquele que é escutado.
- Deus tem um plano para toda a humanidade, um plano para nós, cristãos: viver a fé em Jesus Cristo, em todas as suas dimensões: Em relação a Deus – Filho; Em relação aos outros – Irmão; Em relação à Natureza – Guardião; Em relação a você mesmo – encontrar seu lugar único, ser você mesmo, realizar-se (santidade).
- Devemos descobrir quem realmente somos. Conhecer-se a si mesmo é o início da sabedoria. Somente assim se pode conhecer e amar a Deus e a missão que ele tem para cada um de nós.
Desta maneira, todo momento de espiritualidade, é um tempo bom para tirarmos as máscaras que a vida nos obriga a usar. Nossa realidade é dura. Há a tendência ao individualismo, fechamento no próprio mundo com base na ética do instante. Religião invisível, sem compromisso comunitário.
A verdade religiosa parece se transformar em opinião pessoal. Complexidade, diferenças e fragmentação. Tudo é revisado continuamente. Exclusão crescente e violência constante.
Em meio a tudo isso, perdemos o contato com o centro de nossa alma. É ali que Deus reside: “Deus me é mais íntimo que minha própria intimidade” (S. Agostinho in Confissões, Liv. LVII 6,4)
Na busca de sua alma e do sentido da vida, cada um precisa descobrir novos caminhos que o levem para a interioridade. É preciso sentir seu próprio espaço interior como um lugar de experiências vitais. É preciso atravessar os pantanais da alma para chegar ao seu centro. Os pantanais da alma são nossos medos, sentimentos de perda e de culpa, solidão, raiva, ansiedade…
“Darei ao vencedor uma pedra branca e, gravado nela, um nome novo que somente conhece quem o recebe” (Ap 2,17). Quem empreende esta aventura sai da alienação e chega ao conhecimento de si mesmo e de Deus.”
Na questão do autoconhecimento, os místicos e sábios de todas as religiões e de todos os tempos coincidem: “Conhece-te a ti mesmo” (inscrição no Templo de Delfos-Grécia); “Torna-te quem tu és, conhecendo-te” (Píndaro); “Quem conhece os outros é sábio, quem se conhece a si é perfeito” (Tao-te-king cap.33); “Todas as graças de Deus são concedidas ordinariamente envoltas com o conhecimento próprio” (S. João da Cruz in Noite escura, Liv. I, cap. 12,2); “O conhecimento de si mesmo é coisa tão importante, este descer dentro de si mesmo, que não queria que nisso houvesse relaxação” (Sta. Teresa de Jesus, in Moradas, cap. I, n. 1-3); “O humilde conhecimento de si mesmo é um caminho mais certo para ir a Deus que o esquadrinhar de todas as ciências”(Imitação de Cristo, Liv. I, cap.3); “O caminho para atingir o conhecimento verdadeiro e a experiência de meu ser – vida eterna que sou – é este: nunca abandones o autoconhecimento” (Sta. Catarina de Sena, in Diálogo, Parte I, 2.3). Enfim, C. G. Jung: “Uma resposta positiva ao problema da experiência religiosa apenas pode dar-se, se o homem estiver disposto a satisfazer às exigências de um exame e conhecimento rigoroso de si.” (in Presente e Futuro, cap. 6).
Refletir buscando conhecer-se, é uma bênção e oportunidade de refazer, recomeçar e reorientar a vida enquanto ainda é tempo. Por isso, o encontro para rezar, meditar e autoconhecer-se, é sempre um tempo favorável, uma graça que não se pode desperdiçar!
No momento da morte, nos ensina a escatologia cristã, o homem se torna definitivo, nada mais pode ser alterado ou mudado nem nos seus atos nem na sua personalidade. A morte é o ponto final em um processo dinâmico, no decorrer do qual você se tornou esta única e inconfundível pessoa. Na hora de nossa morte, somos o que fizemos de nós no decorrer de nossa vida, somos o resultado de nossas decisões tomadas.
Na morte, não há mais possibilidade de fugir de si mesmo, de recomeçar e corrigir-se. Na morte, a pessoa se conhecerá pela primeira vez como ela é realmente, na sua dimensão pessoal, socioestrutural, histórica. Haverá a presença total, presença da própria pessoa a si mesma, presença de tudo o que a pessoa fez ou omitiu durante sua via. Por isso, é necessário buscar a fonte interior, purificá-la para poder beber a água pura desta fonte que vivifica: “Bem-aventurados os puros de coração porque verão a Deus” (Mt 5,8).
Na sua morte, a pessoa humana conhece-se a si mesma na presença de Deus. Não é Deus que julga o homem na morte. Na morte, a própria pessoa se julga diante de Deus. A própria pessoa vai perceber a distância entre sua vida vivida e o projeto de Deus para ela. Poderemos perceber qual o projeto que Deus tinha para nossa vida pessoal (evolução plena, vontade de Deus) e o que realmente fizemos de nossa vida, até que ponto aceitamos ou não a graça, a ajuda de Deus (evolução realizada). Este ato de cognição diante de Deus já é parte do juízo.
- Ânsia de liberdade e auto-rrealização
“Quem me libertará deste corpo de morte?” Rm 7,14-24
O ser humano procura um amor capaz de levá-lo além dos estreitos limites de sua fraqueza, do seu egoísmo e, sobretudo, de sua morte. Jesus pergunta ao homem: o que procuras na vida? O homem responde: Mestre, onde moras? (Jo 1,35-44). O paralítico de Bethesda: o homem espera uma oportunidade de se curar, de ser feliz (Jo 5,1-9). A samaritana sedenta: Deus sempre espera o homem à beira do poço (Jo 4, 4-16).
Para fazermos um bom encontro consigo mesmo, é necessário descobrirmo-nos necessitados de misericórdia e libertação. Somos pecadores, temos ferimentos, temos nossa ferida secreta que precisa ser curada. Qual é nossa ferida original? Deus nos espera à beira do poço, ele nos busca e se dispõe para o encontro pessoal, ele quer nos saciar, nos curar.
A samaritana teve vários maridos, buscava ser amada – sua ferida secreta era não sentir-se amada – buscava de forma errada saciar sua sede existencial de felicidade. Ela não havia encontrado a fonte certa para beber. Tinha sede, bebia em fonte errada, aumentava a sede e aumentava a infelicidade. Jesus se revela como a verdadeira fonte capaz de saciar a sede existencial de felicidade que o ser humano traz dentro de si. Temos necessidade de um diálogo com Cristo a respeito de nossa vida. A samaritana acreditou nele, sentiu-se amada por ele. A fé no amor plenificou sua vida a ponto de tornar-se missionária. A fé autêntica leva ao testemunho.
A maioria das pessoas, como a samaritana, vê o problema do amor, antes de tudo, como o de ser amado, em lugar de amar. A mais profunda necessidade do homem é superar o sentimento de separação, sua solidão última para realizar a união. Apesar de o amor ser o mais importante, porque somente ele realiza o homem, na realidade, quase tudo o mais é considerado mais importante que o amor: sucesso, prestígio, dinheiro e poder…
Quase ninguém se preocupa em aprender a amar, saber amar, perceber que o amor é doação, é o êxodo de si mesmo para o Pai, passando pelo outro (os irmãos). Na esfera das coisas materiais, dar significa ser rico, não é rico quem muito tem – este é possuidor – mas quem muito dá. Assim é na esfera do amor: é amado quem ama primeiro.
O amor infantil segue o princípio: amo porque sou amado, amo-te porque necessito de ti. O amor amadurecido segue o princípio: sou amado porque amo, necessito de ti porque te amo. Esta é a descoberta que devemos fazer nestes dias para nos ajudar a crescer.
- Espiritualidade: busca de ouvir o que o Espírito diz
Espiritualidade é uma vivência, uma maneira de viver, um estilo de vida; “Uma pessoa será verdadeiramente espiritual (sábia) quando houver nela presença clara e atuação marcante do Espírito Santo de Deus, quando vive movida pelo Espírito. Espírito é substantivo concreto, e espiritualidade é o substantivo abstrato” (D. Pedro Casaldáliga). São Paulo nos recorda que Os verdadeiros filhos de Deus são aqueles que são movidos pelo Espírito Santo (cf. Rm 8, 14).
Tudo o que Jesus fez foi movido pelo Espírito, Jesus foi um homem de profunda espiritualidade (Mc 1,12). Espírito não é o contrário de matéria (Jesus não separa corpo e espírito); para ser espiritual, não precisamos fugir do mundo: espiritual é tudo o que é tocado por Deus (Jo 3, 9-15).
Vida espiritual é o processo de iluminação crescente através da fé que vai eliminando nosso medo. É viver a melhor parte que não será tirada (Lc 10,38-42).
A espiritualidade é como a seiva da árvore, é o motor que impulsiona a caminhada. Examinar nossa espiritualidade é fazer algumas perguntas básicas: Como está minha escala de valores? Qual o centro de minha vida? Qual a força que me impulsiona? Sou capaz de ter compaixão? Para nós, cristãos, espiritualidade é seguimento de Jesus Cristo na força do Espírito. Espiritualidade é viver a vida a partir de dentro.
Estar centrado no núcleo profundo de nós mesmos onde habita Deus. A espiritualidade só é possível em um processo de conversão no qual você busca ouvir o Espírito: fazendo a passagem do homem desintegrado (Gl. 5, 19-21) para o Homem integrado (1Cor. 13,1-8).
* Em um retiro p. ex., devemos fazer um discernimento: se estamos seguindo uma espiritualidade geradora de vida ou geradora de morte:
* Espiritualidade geradora de vida——-a de Moisés
(fé que age imitando o agir de Deus em favor da vida)
* Espiritualidade geradora de morte——-a do Faraó
(fé desencarnada, conformismo e ritualismo, em favor de si mesmo e do seu grupo: leva ao fanatismo)
Temos de ter tempo de ouvir. Tempo para deixar Deus nos visitar e devemos acolhê-lo. Obediência (Ob – audire), ouvir o que o Espírito diz, perceber os sinais dos tempos. Daí a necessidade de muitas vezes, fazer silêncio: “O silêncio é mistério do século futuro, as palavras são utensílios deste mundo” (Isaac o Sírio in Hom. 56)
São João da Cruz escreve: “Uma palavra disse o Pai, que foi seu Filho; e di-la sempre em silêncio e em silêncio ela há de ser ouvida pela alma” (in Ditos de Amor e Luz n.98)
Concluindo:
O cardeal Martini (cf. in Le ali della liberta, Ed. Piemme,2009,p 6-7) enumera cinco atores que se unem quando queremos ter vida espiritual: o primeiro é o Espírito Santo, o segundo é você mesmo, o terceiro é a Palavra de Deus, o quarto são as comunidades, os fiéis, que rezam pelos vocacionados, pelo seu padre, e o quinto é o espírito maligano, o qual é o primeiro a trabalhar, logo que você toma a decisão de ter uma vida espiritual séria, para que nada dê certo. Porque quem tem espiritualidade está seguro no caminho da salvação.
No entanto, somos chamados a nos preparar através da oração e de uma vida justa, e esperar Deus agir em nós. Somos chamados a buscar a face de Deus continuamente: “Si dixeris sufficit et peristi” (Se disseres basta, já pereces – Santo Agostinho in Serm. 169,15,18).
O homem é como o arquiteto ou pedreiro que, obra por obra, ação por ação, vai construindo o edifício de sua vida. Sobre que fundamentos? A obra que faço por puro egoísmo, cobiça ou ambição, por vaidade ou covardia, se fundamenta num terreno movediço, na areia; A que faço segundo a vontade ou desígnio de Deus, se fundamenta no terreno sólido, na Rocha (Mt 7,24-27). Rocha é a vontade do Pai que dá consistência à nossa vida se a pomos em prática. Se não pudermos construir um palácio, construamos uma casinha simples, mas o importante é o fundamento:
Jesus Cristo: CAMINHO
VERDADE
VIDA
Cada um é chamado a descer no fundo do poço existencial para encontrar lá no fundo a pérola preciosa, que é a presença de Deus em nós. No dia a dia da existência, os afazeres múltiplos, o ativismo, o estresse, as informações e distrações tomam nosso tempo e nós não nos dedicamos ao “único necessário”, como diz Jesus a Marta (Lc 10,42). Então, nestes dias, temos um tempo de graça. É misterioso o caminho da graça de Deus em nós, dialogando com nossa liberdade.
FELIZ PÁSCOA A TODOS!